"O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem." (Rubem Alves)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

CRÔNICAS DE MORTES ANUNCIADAS E A "SURDOCEGUEIRA" ESPONTÂNEA


Não cultivo o hábito de postar notícias particularizando acidente de trânsito(1) , até porque, caso resolvesse fazê-lo, me seria bastante dificultoso selecionar, no trágico universo diário das mortes no trânsito, quais as mais relevantes (as “mais trágicas” ou as “mais sanguinolentas”).

Chamou-me a atenção, todavia, a reação de alguns internautas diante do link disponibilizado(2) no Facebook (3) por um dos sites regionais de notícia do Sertão Central cearense. A reportagem geradora de controvérsia trata acerca de “acidente de trânsito” registrado na rodovia CE 040, no limite entre os municípios de Fortaleza e Eusébio, resultando em três mortes e em mais duas pessoas lesionadas. A notícia foi destacada pelos sites regionais tendo em vista que duas das vítimas fatais residiam em Quixadá, no interior do estado.

SÍNTESE DA NOTÍCIA

“Três mulheres morreram, na tarde deste domingo, dia 04, após a colisão de um carro de passeio com um poste na CE-040. O acidente ocorreu por volta das 14h30 nas proximidades do km 12, município de Eusébio, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).

De acordo com informações da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), o motorista do veículo trafegava em alta velocidade, quando perdeu o controle e bateu no poste, partindo o carro ao meio. Com a batida, as três jovens que estavam no banco traseiro morreram”.

O título da reportagem: “DUAS JOVENS DE QUIXADÁ MORREM EM ACIDENTE”.

SÍNTESE DAS REAÇÕES

“Me perdoe, mas não acho que o Face seja para estar divulgando este tipo de noticia, está se tornando algo triste, pra baixo... esse não é o objetivo! É para contatos, amizades... divulgação de coisas boas, cultura... mas é minha opinião..” (usuário[a] "a");

“A minha também, concordo, a gente abre o Face para se divertir e trocar carinho com os amigos, mas agora só nos deparamos com tristezas. Onde podemos sorrir um pouco? Nos sentir felizes por um momento?” (usuário[a] "b");

“A vida da gente já é tão cheia de notícias ruins, jornais sensacionalistas... entro no Face, na maioria das vezes, pra jogar conversa fora e fazer muitas brincadeiras. Desopilar.” (usuário[a] "c").

Sem me aprofundar em uma discussão quanto ao mérito de manchetes (e notícias) divulgadas e exploradas com o propósito maior de emocionar ou escandalizar (pois é isso que se busca mediante o censurado “sensacionalismo”!), tais protestos me remetem a um trecho do livro Trânsito no Brasil: ..., no ponto onde abordo a “lamentável dicotomia entre a morte no atacado (sistema de tráfego aéreo) e a morte no varejo (trânsito terrestre)” para consignar que “o caos terrestre urge providências”.

As "mortes no varejo", uma centena delas, em média, registradas diariamente no trânsito brasileiro nos tornaram apáticos, insensíveis, a ponto de simplesmente as considerarmos tragédias inevitáveis e, por isso mesmo, imperceptíveis? Não justificariam elas as nossas atenções...(4)

Dentre as medidas reclamadas, reputo como das mais urgentes a realização de debate realístico e permanente sobre os acidentes (ou contingentes) de trânsito, promovendo-se análise criteriosa acerca das suas causas e das suas consequências (tanto para o indivíduo, quanto para a coletividade).

Compreendo que existe certo temor de que resistências como essas (observadas no Facebook )[5] possam ocorrer (6). Ademais, no Brasil convencionou-se que verdades desagradáveis devem ser transmitidas com bastante sutileza; mensagens publicitárias que se propõem educativas não podem mostrar e/ou dizer determinadas “verdades inconvenientes”.

Sem nenhuma pretensão de imitar o ex-vice presidente americano, Al Gore (protagonista do documentário “An Inconvenient Truth” , EUA, 2006 [7]), de caso pensado, entretanto, concluo o texto com três delas:

NÃO "MORREM" PESSOAS NO TRÂNSITO. PESSOAS SÃO ASSASSINADAS NO TRÂNSITO!

À LUZ DA PRIMEIRA VERDADE INCONVENIENTE, EXSURGE-SE A SEGUNDA: AS MORTES CAUSADAS POR MOTORISTAS EMBRIAGADOS SÃO NADA MAIS DO QUE O ENCONTRO DO NECESSÁRIO COM O POSSÍVEL, OU SEJA, UM FATO CONTINGENTE: UM CONTINGENTE DE TRÂNSITO . (8)

POR FIM, FECHAR-SE À REALIDADE NÃO FAZ COM QUE ELA DEIXE DE EXISTIR. AO CONTRÁRIO, IMPLICA NA PERDA DE UMA BOA OPORTUNIDADE PARA, SE FOR O CASO, ENFRENTÁ-LA E TRANSMUDÁ-LA. SOMOS, SIMULTANEAMENTE, VIRTUAIS VÍTIMAS E POTENCIAIS ALGOZES NO TRÂNSITO.


1. Utilizo no texto essa expressão por ser a mais recorrente e, nesse sentido, mais facilmente compreensível por aqueles que não são profissionais do trânsito. Friso, todavia, a imperatividade de se analisar a proposição do Ilustre Presidente da ABPTRAN - Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito e Coordenador dos Cursos de Pós-graduação do CEAT - Centro de Estudos Avançados e Treinamento / Trânsito, Julyver Modesto de Araujo, o qual sugere uma nova visão do que se convencionou denominar como acidente de trânsito, com o objetivo de transmitir a ideia de que ele pode ser evitado, por ser um fato que não é absolutamente necessário, mas contingente. A proposta de se utilizar a expressão CONTINGENTE DE TRÂNSITO encontra-se justificada no artigo que pode, e deve, ser lido clicando aqui.

2. Em 05 de dezembro de 2011.

3. A propalada "rede social" que, pressuponho, é conhecida de todos e que - conforme a autodescrição disponível em sua página inicial - é "destinada a reunir pessoas a seus amigos e àqueles com quem trabalham, estudam e convivem".

4. Salvo quando nos atingem diretamente?

5. Importante se frisar que no Facebook os usuários dispõem apenas das opções CURTIR e COMENTAR. A opção NÃO CURTIR (ou REPUDIAR) inexiste, o que, porém, não impede que uma pessoa discordante quanto a um determinado conteúdo possa expressar seu descontentamento - um “NÃO CURTIR” - no campo destinado aos comentários (como, aliás, fizeram os usuários que divergiram da publicação a respeito das mortes das jovens quixadaenses).

6. E, efetivamente, elas ocorrem!

7. No Brasil, lançado com o título “Uma Verdade Inconveniente”.

8. Posição do respeitável doutrinador Julyver Modesto de Araujo, exarada no artigo já mencionado e com a qual concordo in totum.

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