"O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem." (Rubem Alves)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

A AMC VIROU BOAZINHA?

Após considerável polêmica nos meios de comunicação, com ênfase para as acaloradas discussões nas redes sociais, a Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania de Fortaleza (AMC) posicionou-se acerca da conduta representada pelo avanço semafórico em determinados horários. Sem desconsiderar a previsão contida no artigo 208 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a entidade esclareceu que, “nos locais controlados por semáforos, onde existe fiscalização eletrônica, o equipamento não registra a infração do avanço do sinal vermelho durante a madrugada, entre 20h e 05h59, desde que a passagem pelo local se dê em velocidade reduzida, ou seja, com no máximo 30km/h”.

Que o avanço de sinal é legalmente tipificado como infração administrativa, e que isso independe de horário, nem se discute. Que a AMC, assim como qualquer órgão ou entidade do Sistema Nacional de Trânsito, falece de competência para, expressamente, autorizar o descumprimento de uma regra estabelecida pelo CTB, também é indiscutível. Qualquer aspirante a especialista ou neófito no estudo da legislação de trânsito é capaz de recitar, sem ler, o artigo 280 do CTB: “ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração...”. Aliás, qual o órgão/entidade do Sistema Nacional de Trânsito que, dotado de um mínimo de coerência, irá incentivar a desobediência à sinalização que ele(a) mesmo(a) implantou? Outras questões, entretanto, podem e devem ser suscitadas: 1. A quem interessa o positivismo extremado? 2. O posicionamento da AMC é razoável ou constitui-se verdadeiro absurdo? 3. Você, que mora em Fortaleza, concorda com a “adequação” feita pela AMC ou dela discorda?

Conforme noticiado pelo jornal O POVO (16/08/2017), durante o mês de julho deste ano, um em cada três roubos à pessoa registrados no Ceará ocorreram entre 18 horas e 23h59. Outros 10% se deram entre meia noite e 5h59. Em um mês, foram 2,4 mil ocorrências entre a noite e a madrugada. Segundo estatísticas da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social, o horário da noite é quando ocorrem mais roubos – os chamados crimes violentos contra o patrimônio.

Eis a realidade posta. Diante dela, argumentar, pura e simplesmente, que à AMC cabe aplicar o código (e ponto e pronto!), é uma posição muito cômoda. Apegamo-nos ao positivismo exacerbado e tudo certo? Ora, não se olvida que a segurança viária é um dos pressupostos da segurança pública! Assim como não se ignora que a efetivação do direito à segurança não ocorre, de fato, sem que se tenha segurança, também, no trânsito. Decerto, soa estranho se defender “mais segurança pública” desconsiderando-se regras básicas de segurança viária. O avanço ao sinal vermelho do semáforo é, para além de infração administrativa, uma atitude temerária, que provoca inúmeras tragédias. Em situações excepcionalíssimas, poderia tal infração ser justificada tendo por base precisamente “razões de segurança”? Sim. A AMC autoriza, recomenda a prática? Óbvio que não!

Eu, em particular, tal qual a AMC, recomendo obediência à sinalização. Que cada condutor busque gerenciar a condução de seu veículo na via de modo a não se expor demasiado a um roubo e, muito menos, a um acidente. Situações ideais, contudo, nem sempre correspondem às circunstâncias reais. O que esclarece a nota, motivada pelas muitas versões surgidas nos últimos dias, é que, observadas algumas circunstâncias que dizem respeito à segurança (horário, velocidade máxima) não se dará a fiscalização eletrônica desse tipo de infração. Em outras palavras: mantém-se um entendimento que já fora assimilado pela população. Detalhe: a constatação visual pelo agente de trânsito não está descartada (e poderá ocorrer). O posicionamento ora reiterado pela AMC não me parece de todo irrazoável – e, sim, é perfeitamente possível, em visão técnico-jurídica, se discordar dele.

A discordância é legítima, reitero. Importante, porém, que se atente ao fato de que “o Direito não pode ser antípoda ao senso comum” (eis aqui uma das lições deixadas por Rui Barbosa). A aplicação da norma, também não. É impossível se demonstrar a legitimidade dela sem se levar em consideração a sua valoração social. O Direito, que transcende à mera noção de norma legal, não pode estar dissociado do sentimento de justiça daqueles a quem ele se destina.

Por fim, há que se ter cautela com a flexibilização da norma e com determinados ajustes, assim como há que se estar atento aos malefícios do positivismo exacerbado. Não custa lembrar que a Comissão de Ciência e Ensino Jurídico da OAB, em relatório final apresentado durante a sua XIV Conferência Nacional (em 1992), já condenava o puro exegetismo e o positivismo jurídicos, taxando-os de “pragas universitárias nacionais”.

Luís Carlos Paulino